ECA- 33 anos: ‘Uma lei que protege a infância, protege a sociedade como um todo’
Uma das maiores conquistas da sociedade brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é considerado uma das mais avançadas e completas legislações do mundo. O documento, que colocou na pauta da agenda pública a proteção integral e os direitos da infância e da adolescência como prioridade absoluta – e inspirou 16 países latino-americanos a transformar suas leis –, completou 33 anos neste 13 de julho. “Mas ainda há muito o que avançar para que o ECA amadureça na realidade do país e cumpra tudo aquilo que tentou estabelecer”.
Quem afirma é a coordenadora do setor de educação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil, Maria Rebeca Otero Gomes. Ela conversou com o Porvir, ao lado de Mariana Braga, oficial de programas de educação da agência, para debater como a escola deve se apropriar do ECA, que está incorporado, inclusive, na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). “É um instrumento que garante as políticas públicas tão necessárias à infância e à juventude em situações de risco e de vulnerabilidade social. A escola, os profissionais de educação e os estudantes podem tornar efetiva a garantia dos direitos humanos e do ECA”, reforça Mariana.
As especialistas debatem, ainda, como a pandemia acelerou as desigualdades sociais no Brasil. “Diante disso, é essencial agir rápido, indo atrás de cada criança e cada adolescente que está com seu direito à educação negado”, declara Maria Rebeca. Confira a íntegra da entrevista: Porvir – Como avalia o Estatuto da Criança e do Adolescente nesses 32 anos de legislação? Como ele se compara a legislações de outros países?
Maria Rebeca – O ECA é um marco e, ao mesmo tempo, um aprimoramento na proteção da infância no Brasil. Destacou-se pelo reconhecimento de direitos humanos de crianças e adolescentes, além de assegurar a proteção a esse grupo para a garantia de seu desenvolvimento integral.
Avançamos muito nesses 32 anos, mas ainda temos muito o que fazer. Conseguimos garantir a efetivação do direito à educação desse grupo populacional. Todavia, com a pandemia da Covid-19, os números de crianças e adolescentes fora da escola voltaram a crescer. Significa que, de acordo com levantamento do Todos pela Educação, 244 mil meninos e meninas de 6 a 14 anos não estavam matriculados na escola no primeiro semestre de 2021: a maior proporção nos últimos seis anos. Assim, ainda há muito a avançar para que o ECA amadureça na realidade do país e cumpra tudo aquilo que tentou estabelecer.
Porvir – Historicamente, quais outros documentos garantem os direitos da infância?
Maria Rebeca – Em 1959, a ONU (Organização das Nações Unidas) aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, elencando dez princípios a serem seguidos em defesa da infância. Passados dez anos, em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, consagrou, em seu artigo 19, o direito de todas as crianças às medidas de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado. Além disso, merece destaque a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, com ratificação de 196 países, incluindo o Brasil, considerado o instrumento de direitos humanos mais aceito na história. Porvir – Qual a principal inovação que o ECA trouxe?
Mariana – Sobre as inovações trazidas pelo ECA, não se pode negar o avanço da lei no sentido da proteção integral à criança e ao adolescente. A partir desse Estatuto, as crianças e os adolescentes brasileiros passaram a ser considerados pessoas em desenvolvimento, o que requer grande atenção e proteção em diversos sentidos, a fim de que sejam garantidos os seus direitos e as condições especiais para o crescimento integral.
A Constituição Federal de 1988, promulgada dois anos antes da criação do ECA, já anunciava boa parte destas garantias fundamentais ao tratar, em seu artigo 227, da necessidade de “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No entanto, o ECA não apenas confirmou essas garantias, como também tornou possível a sua efetivação.
Porvir – Quais são os principais aspectos a serem cumpridos? E aqueles que precisamos resgatar por conta das dificuldades impostas pela pandemia?
Maria Rebeca – Como eu disse anteriormente, o Brasil avançou enormemente na garantia de direito das crianças e dos adolescentes. Todavia, o atual panorama mundial impôs novos desafios. Quando pensamos na pandemia da Covid-19, é instantâneo considerar os reflexos negativos que ela causou, não só na educação. Esses impactos são preocupantes não somente em relação à aprendizagem, mas, também, quanto ao número de crianças e jovens que abandonaram a escola. Esses reflexos já podem ser vistos nas primeiras avaliações diagnósticas de desempenho dos estudantes. Os números mostram que a pandemia provocou um grande estrago na aprendizagem escolar.
Nota-se que a pandemia acelerou os problemas e acentuou as desigualdades sociais existentes em nosso país. Diante disso, é essencial agir rápido, indo atrás de cada criança e cada adolescente que está com seu direito à educação negado.
Porvir – Estamos em um país que enfrenta enormes dificuldades, dos mais variados tipos. Por que falar em direitos, especialmente para crianças, está longe de ser consenso?
Mariana – Os direitos humanos são o conjunto de direitos e liberdades que devem ser garantidos a todos os seres humanos, independentemente de raça, cor, sexo, religião, ideologia política… No entanto, algumas vezes, o conceito de direitos humanos é mal interpretado. Todos, e sobretudo os mais vulneráveis, devem ser protegidos. Desta maneira, entender e advogar para que o acesso à informação de qualidade sobre a proteção à infância à adolescência é fundamental e deve ser garantido. Defender os direitos humanos é defender a humanidade. É defender a si mesmo.
Porvir – Por que, apesar de uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger crianças e adolescentes, ainda é tão atacada pelos setores mais conservadores? Em sua opinião, o que é preciso para fortalecê-lo? Como a sociedade pode participar disso?
Maria Rebeca – Há uma falta de conhecimento, de acesso à informação de qualidade sobre direitos humanos. É papel de cada um defender os direitos humanos e difundi-los. Uma lei que protege a infância, protege a sociedade como um todo. Vivemos em comunidade e uma parcela não pode ser violentada sem que o conjunto sofra. Sem lei estamos entregues à barbárie, sem referências para a construção de uma sociedade ética e para a dignidade humana. A sociedade como um todo, e destaco, em especial, a comunidade escolar, precisa conhecer o ECA para reconhecer a educação como um caminho para a consolidação dos demais direitos humanos.
Porvir – Como vê a relação do ECA com a educação?
Mariana – O ECA constitui-se importante ferramenta de trabalho para os profissionais da educação em suas ações pedagógicas e também orienta todo o sistema educacional. É um instrumento que, inclusive, garante as políticas públicas tão necessárias à infância e à juventude em situações de risco e de vulnerabilidade social.
Porvir – E como a escola pode participar desse processo?
Mariana – A escola, os profissionais de educação e os estudantes podem tornar efetiva a garantia dos direitos humanos e do ECA. Ninguém pode ficar excluído da educação. O direito a ela se exerce na medida em que as pessoas, além de terem acesso à escola, possam se desenvolver plenamente e continuar aprendendo. Isso significa que a educação terá de ser de qualidade para todos e por toda a vida, conforme prioriza o ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) 4 – Educação de Qualidade – das Nações Unidas.
Porvir – Em sua opinião, como os professores podem contribuir com o debate sobre o ECA? Quais materiais de apoio podem ser indicados?
Maria Rebeca – O papel do professor é de mediar, incentivar a criatividade, acolher e tratar diferenças, oferecendo um ambiente propício para debater as questões relacionadas aos direitos humanos: o que está explícito no ECA. É também de formar cidadãos conscientes, completos e autônomos. E não é uma tarefa fácil! A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) incorpora o tema de direitos humanos e o próprio ECA. Neste sentido, cabe aos profissionais de educação, em especial ao professor e regente, a realização de debates, oficinas, o uso de recursos educacionais abertos e tecnológicos na promoção do conhecimento de qualidade para todos e ao longo da vida. A Unesco possui uma série de referências sobre a importância da garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes, bem como materiais de apoio para a escola. Para aqueles que quiserem conhecer, é só acessar a nossa biblioteca digital.
Porvir – E para os jovens, qual sugestão daria para que conheçam melhor o Estatuto?Maria Rebeca – Na verdade, há um grande debate a continuar sendo feito em torno da garantia dos direitos de crianças e adolescentes, como conversamos aqui. No entanto, poucos conhecem o Estatuto. Conhecer o ECA, reconhecê-lo, aplicá-lo e denunciar suas violações é dever de todos. Para tanto, a primeira lição seria a sua leitura. Existem vários recursos, educacionais e tecnológicos, hoje em dia, de difusão das garantias do ECA. Assim, recomendo a todos os jovens que acessem esses recursos e a própria legislação para reafirmar a proteção de pessoas que vivem períodos de desenvolvimento psicológico, físico, moral e social.
Fonte Porvir C/ Ana Luísa D’Maschio