Pausa para a Leitura: Não existe Natal sem reflexão

Não existe Natal para os miseráveis. Os indigentes, escamoteados pela sorte, não esperam presentes tampouco redenção no Advento. Todos os sonhos infantis de uma pessoa com fome são eclipsados por carências materiais. Quando há faltas no corpo, a alma é secundária. A alma, de fato, é uma prerrogativa daqueles afortunados com o essencial. Para quem carece do básico, a urgência é distinta. Sem dinheiro e sem festas, resta apenas a brecha para satisfazer as necessidades fisiológicas, qualquer outro anseio tem o acintoso status de um luxo ultrajante.

Não existe Natal para os doentes. Os acamados repousando em leitos de UTI, ou quartos estéreis de hospital, almejam, mais do que qualquer presente material, a tão sonhada cura – frequentemente improvável, muitas vezes inalcançável. A zona de conforto, esta realidade tão ladrilhada por lugares comuns vazios, é o destino dos sonhos dos enfermos. A doença, insidiosa e sorrateira invasora, desvenda que a tranquilidade da rotina é o verdadeiro refúgio da paz.

Não existe Natal para os presidiários. Nos cárceres do mundo, privados de liberdade e assombrados pela culpa, os detentos vagueiam livremente pelos tortuosos labirintos da consciência. Perambulam desimpedidos por caminhos sombrios de remorso e saudade. Seus desejos mais profundos são retornar para onde vieram: a escassez sempre será mais acolhedora do que a solidão de uma prisão.

Não existe Natal para as crianças abandonadas. Nos orfanatos ou vagando pelas ruas vazias, esses pequeninos, negligenciados pela sociedade, anseiam por algo mais significativo do que brinquedos ou doces. Elas sonham com uma família, amor, atenção, proteção e presenças genuínas. E nunca lembrarão de escrever cartinhas para o Papai Noel. Para os órfãos e abandonados, o Natal é um lembrete cruel do que jamais possuíram.

Não existe Natal para os idosos esquecidos. Nos asilos ou em lares dominados pelo silêncio, muitos velhos passam a noite de Natal sozinhos ou na companhia das dolorosas memórias de dias felizes. Seus anseios são por diálogos, lembranças compartilhadas, afeto e companhia. Alguns nem sabem que é Natal. Outros revivem infinitamente uma celebração silenciada para sempre na solidão bruta dos dias que eles são compelidos a viver.

Não existe Natal para os que sofrem em silêncio. As almas atormentadas pela depressão e pela ansiedade, para quem cada dia é uma escaramuça contra demônios internos e monstros invisíveis, encontram no Natal um desafio descomunal. Enquanto o mundo celebra, eles lutam por um momento de serenidade, por um respiro em meio à tempestade emocional que os afoga. Seu desejo é por paz de espírito, um alívio, mesmo que breve, da inexorável dor de existir.

Não existe Natal para os trabalhadores lassos, heróis que labutam enquanto o mundo descansa. Os enfermeiros, médicos, bombeiros, policiais e tantos outros sacrificam o Natal pelo bem-estar e segurança de todos, para quem a noite Santa é apenas mais um turno, uma continuação extenuante e necessária para a vida em sociedade continuar. O Natal é marcado pelo som dos alarmes e pelo brilho das luzes de emergência, não pelas melodias natalinas ou pelas luzes cintilantes dos enfeites.

Não existe Natal para os enlutados. Ou existe um Natal diferente. Aqueles que perdem hercúleos amores, malogram a irresoluta habilidade de sentir a insondada magia que embala presentes e sonhos.

Não existe Natal para inúmeros. A falta de sentido do Advento é tão potente quanto a crença infantil nos seres míticos do Polo Norte. Por opção, guiados por dogmas religiosos ou convictos da ausência absoluta da divindade cristã, muitos não concebem a existência das celebrações natalinas. Outros simplesmente não conseguem eleger razões plausíveis para reverenciar uma data que deveria ser como qualquer outra. Pessoas inábeis em manter relações interpessoais também ferem o calendário festivo do Natal – imersas em egoísmo ou solidão, não conseguem comemorar.

Não existe Natal sem reflexão.

Existe um Natal suspenso no ar e inabalável como as árvores artificiais plantadas nas salas das famílias imperfeitas do mundo. O menino Jesus descansa sereno numa manjedoura eterna, a Virgem Maria segue vigiando as dores dos tempos com o imaculado São José e os Magos Reis. A paisagem pode alterar-se, mas o cenário segue intacto e imutável. Pode-se mudar o rumo dos oceanos, impérios podem desabar e rios podem secar, entretanto o altar supremo do nascimento do Deus vivo se mantém cuidadoso e atento às nossas vidas conturbadas e aos nossos sonhos impossíveis. A gruta de Belém, eterna como as constelações das estrelas, cuida de todos que nascem, viveram e existirão com a benevolência incondicional e democrática que só o Sagrado conhece, desafiando a turbulência dos séculos e dos homens. E até aqueles que se sentem distanciados do sentido religioso do Natal, são agraciados com as luzes que insistem em brilhar – aqueles lampejos mágicos de esperança e enlevo, no qual reside o misterioso segredo da fraternidade de Deus que nem dois mil anos de dores, crimes e atrocidades conseguiram destruir.

Amor vincit omnia. O amor vence tudo. Que, neste Natal, aqueles afortunados com uma vida aparentemente comum, possam reconhecer e valorizar suas grandiosas e infinitas bênçãos. E que haja uma compreensão súbita, genuína e inefável de que somente o amor ao próximo pode salvar o mundo e o Natal de todos os males do mundo.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima

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