Belchior : “a verdadeira arte tem o poder único de chocar e de espantar.”

Belchior

 

A verdadeira arte tem o poder único de chocar, de espantar. E foi exatamente essa a minha sensação – choque e espanto – quando vi pela primeira vez a figura de Belchior. Era uma noite qualquer, de uma sexta-feira qualquer, e assistia eu ao programa Clube dos Artistas, apresentado por Ayrton e Lolita Rodrigues, na finada TV Tupi, no já remoto ano de 1976. Entrava no palco aquele tipo forte, marcante, voz anasalada, diferente, e um tanto fora dos padrões convencionais exigidos pelo show business. Chegou arrasando com Apenas um Rapaz Latino-Americano. Paralisei. Cantar não é bem o verbo apropriado, porque o cara não canta, quase declama sua poesia, acompanhada de instrumentos musicais. Aquilo grudou no meu cérebro feito chiclete e talvez fosse sofisticação demais para uma criança naquela altura, mas que teve a sorte de entrar pela adolescência e juventude sorvendo o que o bardo cearense criou de melhor em sua carreira. A música fazia parte do seu LP Alucinação, reverenciado por críticos sérios e gente entendida no assunto como um dos melhores discos já produzidos pela indústria fonográfica brasileira em todos os tempos. Nos três anos seguintes, mais três pérolas: Coração Selvagem, Todos os Sentidos e Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo. Que privilégio teve a nossa geração! Nesses quatro álbuns existem pelo menos 30 ou 40 músicas que serão lembradas, discutidas e tocadas daqui a 100 anos. Muito se debate sobre sua produção posterior. Todavia, certamente está aí, nesses quatro trabalhos, quase tudo o que Belchior tinha a dizer. E não foi pouco o que ele disse. Segundo o insuspeito Caetano Veloso, “Suas músicas não são das que morrem”. Suas canções tocam fundo nos dilemas que permeiam a existência humana: solidão, preconceito, violência, angústia, materialismo, injustiças, sejam elas quais forem. Para o ótimo Guilherme Arantes, “Belchior foi e sempre será o melhor letrista de canções transformadoras que já existiu”. Porque são letras ao mesmo tempo populares, mas que revelam a erudição de quem dialogava, o tempo todo, com a obra de gente grande: Dante Alighieri, Heráclito, Garcia Lorca, Fernando Pessoa, João Cabral, Bilac, Clarice Lispector, Poe, Burgess, Kubrick, Bob Dylan, Caetano, Luiz Gonzaga e Beatles, entre tantos e tão díspares outros ícones da literatura e das artes. Suas letras são atemporais e conquistam gerações, seja revelando situações comuns das pessoas, seja traduzindo os dramas do cotidiano. Como em Alucinação: “A minha alucinação é suportar o dia a dia/E meu delírio é a experiência com coisas reais”. Ou na canção-manifesto Como Nossos Pais, imortalizada numa interpretação magnética de Elis Regina: “Minha dor é perceber/Que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos/Nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Também encarnando a crueza da vida de um migrante pobre na cidade grande, retratada em Fotografia 3 x 4: “Em cada esquina que eu passava/Um guarda me parava/Pedia os meus documentos e depois sorria/Examinando o 3 x 4 da fotografia/E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”. Ou geniais achados poéticos, carregados de delicadeza e lirismo, como em Galos, Noites e Quintais: “Eu era alegre como um rio/Um bicho, um bando de pardais/Como um galo quando havia/Quando havia galos, noites e quintais”. Porém, em alguns versos, Belchior já prenunciava o que lhe viria a ocorrer anos mais tarde, resultado de sua absoluta incapacidade de lidar com a dura realidade mundana e de seu total desapego por futilidades e pelos bens materiais: “E no escritório em que eu trabalho/E fico rico/Quanto mais eu multiplico/Diminui o meu amor” (Paralelas, 1977); “Essas coisas de dinheiro e de família eu nunca entendi bem” (Fotografia 3 x 4, 1976); “No centro da sala/Diante da mesa/No fundo do prato/Comida e tristeza” (Na hora do almoço, 1978); “Vida, pisa devagar/Meu coração cuidado é frágil/Meu coração é como vidro/Como beijo de novela” (Coração Selvagem, 1977). São apenas algumas citações, entre tantas que o curto espaço não permite incluir. Algumas de seu vasto repertório, que constatam as características mais determinantes por trás do homem: seu extremado humanismo e seu refinamento intelectual, forjados no mosteiro de capuchinhos de Guaramiranga – CE, nos bancos da faculdade de medicina de Fortaleza, nos ateliês de pintura do talentoso artista plástico que foi, e pela vida afora, desde as agruras do sertão cearense, até a vida de retirante nordestino que vagou a esmo por Rio de Janeiro e São Paulo, até encontrar o merecido espaço entre os gigantes da MPB.

Um véu de incertezas envolve os últimos 10 anos da vida de Belchior, quando começaram a surgir os boatos de seu famoso sumiço do mundo artístico e, finalmente, as evidências: shows cancelados, ateliê abandonado, celular desativado, pensões atrasadas e dívidas. Como um São Francisco de Assis moderno, Belchior largou tudo para trás e passou a viver como um fugitivo. Fugia de tudo e de todos. Tanta sensibilidade e desprendimento, afinal, sucumbiam à “alucinação do dia a dia”. O que aconteceu ao certo com o Bob Dylan dos trópicos talvez seja mais um desses enigmas a nos devorar, porque nunca serão suficientemente decifrados. O que se sabe mesmo é que a tresloucada fuga terminou numa madrugada fria, na fria Santa Cruz do Sul – RS, em 30 de abril de 2017, quando, ao som de música clássica, sua artéria aorta não suportou a pressão “dessas coisas sem jeito que trago no peito” (como sempre, profético), rompeu silenciosamente e tirou de cena um dos maiores ídolos da nossa música popular, levando consigo dúvidas, questionamentos e mistérios que nunca serão de todo esclarecidos. Que esse canto, que de torto não tem nada, continue feito faca a cortar a carne da gente, e a iluminar caminhos, por muito e muito tempo.

Francisco Costa, Maceió – AL

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