A cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) gerou debate sobre a interpretação da Lei da Ficha Limpa no mundo jurídico. Uma das vertentes é a de que houve “erro” da Corte Eleitoral, com a “ampliação” das hipóteses de inelegibilidade. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior (governo FHC) vê “arbítrio” na decisão do TSE e aponta ainda a violação da presunção de inocência – alguém somente será considerado culpado, perante a Justiça, após condenação definitiva.
“Acho que houve um grande erro do TSE. Eu fui sempre muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, afirmou Miguel Reale Júnior ao Estadão. “Não é por que Dallagnol praticou erros passados que se deve injustamente puni-lo com inelegibilidade”, afirmou.
Na mesma linha, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê “incongruências” na decisão do TSE. Ele avalia que foi feita uma “conta de chegada” no julgamento – construiu-se um caminho de argumentos para se chegar à conclusão. “Talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”, disse o professor.
Reale Júnior afirmou que a hipótese de inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa serve para casos de ex-integrantes do Ministério Público ou do Judiciário que tenham deixado o cargo com pendência de processo administrativo disciplinar (PAD).
No caso de Deltan, não havia nenhum PAD aberto quando ele saiu da Procuradoria da República no Paraná, em novembro de 2021. “Ele tinha apurações preliminares em curso, muitas delas de relevo mínimo. Então, cassaram o mandato com base em apurações preliminares, que nem tinham se transformado em processo administrativo, dizendo que ele poderia ser condenado no PAD”, disse.
Segundo o jurista, normas punitivas, como a Lei da Ficha Limpa, que restringe direitos políticos, devem ser interpretadas de “forma restrita”. Para Reale Júnior, houve uma extensão da hipótese de inelegibilidade, ligada ao PAD, para caso de apurações preliminares. O ex-ministro da Justiça vê “abuso”. “Não se pode estender norma punitiva por meio de analogia ou uma interpretação ilática”, afirmou.
Na mesma linha, Mafei explica que a Lei da Ficha Limpa “traçou a risca” de um dos casos de inelegibilidade na existência de um procedimento administrativo disciplinar. Segundo ele, o marco foi estabelecido “justamente para não haver casuísmo”. Mafei também entende que houve, no caso, ampliação das hipóteses de inelegibilidade, abrindo caminho para questionamentos – “como quando há condenação em duas instâncias ou quando uma pessoa é alvo de 15 inquéritos sendo que em um deles pode advir condenação”.
Segundo o professor, o entendimento pode tornar mais “fácil” o reconhecimento de inelegibilidade de funcionários públicos, em especial de carreiras da polícia, do Ministério Público e Receita.
Fora a interpretação da Lei da Ficha Limpa, Mafei considera que o caso de Deltan não é de “fraude à lei”, como entendeu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação que culminou na cassação do deputado. Tal termo descreve uma espécie de “vício” no ato do ex-procurador – para Gonçalves, o deputado cassado praticou conduta que, à primeira vista, “consistiria em regular exercício de direito”, mas, na verdade, acaba por burlar a lei.
O professor Mafei explica que tal “vício” é verificado quando uma pessoa pratica um ato “não visando seus efeitos próprios”. Ele cita o exemplo de uma pessoa que, no curso de uma ação de execução – fase de cumprimento da sentença, quando o condenado tem de pagar multas – faz doações para familiares com o intuito de escapar de medidas que atinjam seu patrimônio.
No caso de Deltan, para Mafei, a renúncia ao cargo de procurador se deu “visando os fins próprios” do ato – a possibilidade de o ex-chefe da Lava Jato se candidatar na eleição de 2022.